16 novembro, 2008
Caderno de exercíciosO exercício da encomenda
Há momentos em que observa o seu redor. Tem a sensação que, ao fazê-lo, o mundo se suspende e adquire uma nitidez que, sob o regime dos actos, sob a vertigem dos estados comuns, não é possível perceber. Aceita por certeza a existência de uma ordem que só se revela mediante quietude, quando nenhum gesto contamina ou produz interferência sobre essa mesma ordem. Não é capaz de explicar de onde proveio este seu modo de inclinação ao mundo. Já admitiu a sua interrupção. Não obstante, nunca a tentou e o modo persistiu, como um dispositivo alojado em si. Julga que assim acontece por, enquanto plataforma, a distância a que vive permitir-lhe operar um discernimento que não é frequente nos auditórios. Já ensaiou o mesmo exercício na rua ou na presença de outros, porém não surtiu efeito semelhante ou sequer aproximado. Para além disso, a projecção a que o exercício obriga também necessita de resguardo. E a uma maior aproximação ou intimidade tende a corresponder cegueira. Quanto a isso, no entanto, ela imprime uma obstinação de carpinteiro, não dispensando o tacto. A miragem tem limites.
09 novembro, 2008
Caderno de exercíciosO exercício da obsessão
A par do gelo, o espelho é o maior enigma da natureza e dos arredores. Mais misterioso do que o espelho é o reflexo, o negativo, que alguém procura no próprio espelho. Durante muitos anos ela limitou-se a olhar o espelho com utilidade, para, por exemplo, compor o cabelo ou aplicar o
blush. No entanto, aconteceu, um dia a imagem que o espelho lhe devolvia pareceu-lhe com integridade excessiva, falsa. Por sortilégio, o espelho precipitou-se sobre o chão e estilhaçou-se. De pé, começou por contemplar aquela decomposição improvisada pelo acaso. Depois, debruçada, procurou-se nas diversas parcelas do espelho partido, como se em cada pedaço houvesse a impressão de uma parte de si. Ficou demoradamente a tentar reconstruir-se naquele
puzzle de imagens repetidas consoante o talho dos estilhaços. Não disfarçou a avidez emprestada à procura de si. Mas uma espécie de prestidigitação impediu-a de ver-se destroçada naquele chão. Conformou-se. A fome tem limites.
02 novembro, 2008
Caderno de exercíciosO exercício do desperdício
Durante muitos anos, enquanto preparava o pão e o vinho sobre a mesa, pronunciou a oração que conhecia desde idade tenra. Ao princípio por hábito, depois por devoção, repetia as palavras em voz para, por esse exercício, ouvindo-se, confirmar a fé que já começava a exaurir-se dentro de si. Não recorda o dia em que pela primeira vez calou a prece. Tão pouco recorda o motivo por que alterou o seu comportamento. Apenas tem memória do tempo em que, enquanto preparava o pão e o vinho sobre a mesa, rezava. E tem essa memória não porque tenha lembrança das palavras do enunciado da graça, do encadeamento e do ritmo dessas palavras, mas porque, recorda, então sobre a mesa havia sustento sob as formas de corpo e de sangue. Hoje, porém, já não é capaz de imaginar tais formas. É assim desde o dia em que entornou o cálice e guardou-se a observar o vinho derramado a estender-se até ao limite da mesa, desde onde pingava, prolongando-se a mácula sobre o soalho. A fé tem limites.
2006/2022 - Eliz B. (danada composta e padecida por © Sérgio Faria).