03 agosto, 2008
Livrete dos anjos sujos
# xii. As mulheres têm direito às lágrimas, mas não é por isso que eu choro, disse ele a um circunstante, que, percebendo-o homem e perplexo por isso, afastou-se rapidamente, para não ser incomodado por quem considerou louco. De facto, Rodolfo Hoffmann padecia de síncopes recorrentes e, consequência disso, desorientação identitária. Mas o problema não era apenas ele não saber quem era, era também os outros darem-lhe sinais contraditórios sobre si. Se havia quem não estranhasse a sua personalidade e não suspeitasse o chumaço das asas que lhe enchia as costas, tratando-o como a outra pessoa qualquer, havia quem e não raro o olhasse de soslaio e evitasse, por ele ser uma criatura bizarra. Daí que, para acautelar a sorte das suas interacções, para além de pronunciar o nome, chamo-me Rodolfo Hoffmann, rótulo que, por parecer-lhe demasiado contingente e esquisito, considerava não ser suficiente para garantir a sua identificação, ele anunciasse aos outros as suas ocupações profissionais, e dedico-me a ofícios prosaicos, catering e circuncisões, de modo a que, pela apresentação de tal distinção, fosse reconhecida a sua normalidade. Porém a cadência das síncopes de Rodolfo Hoffmann continuou e, como os outros - para quem passou a ser o anjo ou o gajo sincopado, consoante o soubessem ou não soubessem anjo -, ele continuou a não saber quem era.
02 agosto, 2008
O livro das continuações
# xii
Sou do equinócio outonal, da falência de setembro e depois, quando o tempo torna áspero. O verão é uma demora que sofro, não sou seu resort. Imagino o centeio quebrado, as sombras a nascerem nas searas e nas casas caiadas de branco. Sinto o calor a apertar-me a respiração, a quietar-me. Talvez seja sob a luz do estio que mais revelo a fuga em que me consumo. No verão recuo até recolher-me dentro de mim, onde descubro começarem as vertigens. À noite é diferente, mas as noites de verão não são autênticas. Durante o verão não se diz acentuado arrefecimento nocturno, o regime é distinto. Os cheiros são mais soltos, vagam devagar, como se perpetuassem o tempo, produzindo um efeito semelhante ao cigarro com que me acompanho. Não sei, é estranho. O verão faz-me andar lentamente e voltar para trás, para o abrigo telúrico das tardes. O que faço?, espero o outono, o meu ofício. Espero-o sozinha, para a insídia ser perfeita, a continuação.
2006/2022 - Eliz B. (danada composta e padecida por © Sérgio Faria).