Caderno de exercícios
O exercício da obsessão
A par do gelo, o espelho é o maior enigma da natureza e dos arredores. Mais misterioso do que o espelho é o reflexo, o negativo, que alguém procura no próprio espelho. Durante muitos anos ela limitou-se a olhar o espelho com utilidade, para, por exemplo, compor o cabelo ou aplicar o blush. No entanto, aconteceu, um dia a imagem que o espelho lhe devolvia pareceu-lhe com integridade excessiva, falsa. Por sortilégio, o espelho precipitou-se sobre o chão e estilhaçou-se. De pé, começou por contemplar aquela decomposição improvisada pelo acaso. Depois, debruçada, procurou-se nas diversas parcelas do espelho partido, como se em cada pedaço houvesse a impressão de uma parte de si. Ficou demoradamente a tentar reconstruir-se naquele puzzle de imagens repetidas consoante o talho dos estilhaços. Não disfarçou a avidez emprestada à procura de si. Mas uma espécie de prestidigitação impediu-a de ver-se destroçada naquele chão. Conformou-se. A fome tem limites.