14 outubro, 2007
Livrete dos anjos sujos
# ii. Enquanto acariciava o gato sentado sobre o seu colo, Anna Fitzgerald disse, à medida que me confronto e testemunho os outros, a sensação do humano amarga-me mais do que a sensação da realidade. Sinto que somos demasiado reais para podermos ser diferentes, humanos. Passados alguns dias Anna Fitzgerald foi encontrada sem vida. Quando preparavam o seu cadáver, para o colocarem no caixão, descobriram que ela tinha três asas. Para acondicionarem a sua carcaça mais facilmente, cortaram-lhe-as mas não as meteram no féretro. Quanto ao motivo porque assim foi há declarações desencontradas. Há quem diga que o procedimento foi o que foi por falta de coragem, por ninguém daquele lugar atrever-se a sepultar uma criatura angélica. E há quem diga que a omissão das asas no interior do ataúde ficou a dever-se a pormenores de tramitação, decorrentes do facto de a empresa lutuosa contratada para as exéquias, uma empresa de fora, não estar credenciada para proceder ao enterro de gente alada.
07 outubro, 2007
Livrete dos anjos sujos
# i. Vamos direitos ao miolo do mundo, afundamos a faca... Ernst tinha trinta e dois anos quando disse estas palavras. Era um jogador triste, que tentava a sorte em lotarias várias todas as semanas, sem que alguma vez tenha ganho qualquer prémio, ou consolação, que fosse. Vivia num quarto demasiado pequeno que o impedia de desentorpecer o corpo, agitar as asas, contraídas contra o torso. Suicidou-se, manifestou, por ter atingido o limite da compreensão da humanidade e não ter paciência para continuar a investigação sobre a própria condição. As coisas redundam na respectiva existência, que remete para o ser, eu redundo no meu corpo, que fazer?, terminou assim a sua última palestra, após a qual recusou responder a qualquer pergunta que alguém do auditório tivesse a intenção de formular, por pretender assistir à realização de um sorteio para o qual estava habilitado. Não foi sepultado.
2006/2022 - Eliz B. (danada composta e padecida por © Sérgio Faria).